LEIBNIZ E A BUSCA DA HARMONIA
Seria possível conciliar as diferenças existentes no mundo? Leibniz acreditava que sim. Por isso, procurava encontrar a harmonia entre elementos aparentemente díspares: o mundo natural e o mundo moral, a causa eficiente e a causa final, o corpo e a alma, Platão e Aristóteles, a escolástica e o racionalismo de inspiração cartesiana. A busca da harmonia era quase uma obsessão, que o levou à matemática, à física e, daí, à metafísica. Desse modo, ele acabou trilhando um caminho que foi do cálculo infinitesimal à descrição da lei divina que rege o universo.
Interessante é observar que harmonia era algo inexistente na Alemanha de 1646, quando nasce Gottfried Wilhelm Leibniz, em plena Guerra dos Trina Anos. O conflito termina oficialmente em 1648, pelos Tratados de Vestfália, mas resulta na dispersão da Alemanha em centenas de Estados, cada qual professando um dos credos rivais - catolicismo, luteranismo e calvinismo -, que encobrem os mais diversos interesses políticos e econômicos. Em meio às ruínas provocadas pela guerra, Leipzig, cidade natal de Leibniz, é uma das poucas que mantêm certa estabilidade econômica.
Filho de um professor universitário, Leibniz desde cedo lê obras filosóficas na biblioteca do pai. Aos 15 anos de idade, ingressa na Universidade de Leipzig. Depois transfere-se para as de Iena e Altdorf. Nesta última, em 1666, obtém o título de doutor.
Embora convidado a lecionar em Altdorf, Leibniz prefere seguir carreira política e diplomática. Consegue ser admitido na corte do arcebispo de Mogúncia, que, em 1672, o encarrega de uma missão diplomática na França. Ali, conhece as principais figuras do mundo intelectual da época, como Malebranche e o jansenista Arnauld, e estuda escritos matemáticos de Pascal, que tiveram certa influência na formulação do cálculo infinitesimal, em 1676.
Nesse mesmo ano, aceita o cargo de bibliotecário do duque de Hanôver, e, a serviço deste, realiza várias missões diplomáticas, às quais associa um sonho pessoal: reunificar os cristãos, harmonizando e conciliando o protestantismo e o catolicismo. Tais tentativas, porém, dão em nada. No final da vida, Leibniz, que havia acumulado grande prestígio e influência nos meios políticos e científicos de toda a Europa, cai no esquecimento. Quando de sua morte, em 1716, em Hanôver, apenas a Academia das Ciências de Paris presta-lhe homenagem.
Paralelamente às obrigações político-diplomáticas, Leibniz desenvolve intensas atividades científicas e de caráter filosófico. Contribui para a criação de condições institucionais de pesquisa e de difusão da ciência, fundando, em 1682, a publicação Acta Eruditorum e, em 1700, a Sociedade de Ciências de Berlim, da qual foi presidente. Também foi membro da Royal Society, de Londres, a principal sociedade científica da época, e manteve uma rica correspondência com várias personalidades do mundo científico e filosófico de seu tempo.
Esses esforços associam-se ao ideal de Leibniz: o de harmonizar todo o conhecimento humano em um vasto sistema de "enciclopédia universal", projeto que já aparecia em Dissertação sobre a Arte Combinatória, de 1666. Nesta obra, Leibniz preconizava a aplicação da análise combinatória na constituição de uma "característica universal", ou seja, uma espécie de alfabeto que, pela combinação de caracteres, possibilitaria não apenas expor toda a ciência até então acumulada como também descobrir novos conhecimentos.
De certo modo, esse ideal ficou prejudicado por polêmicas em que Leibniz se envolveu, principalmente com os amigos de Isaac Newton, que reivindicavam para esse físico e matemático inglês a primazia de ter formulado o cálculo infinitesimal. Hoje sabe-se que Newton, antos antes de Leibniz, havia chegado a conclusões semelhantes às do "rival", sem no entanto as divulgar. Por outro lado, enqunato a fórmula de Newton destinava-se a suas investigações astronômicas e apresentava, por isso, um alcance limitado, a de Leibniz era universal e exprimia-se por um sistema de notação empregado até hoje.
Esse episódio mostra a dificuldade (ou a impossibilidade) da constituição de uma "ciência universal", e não apenas por razões teóricas. Mas Leibniz, mesmo abandonando a utopia da "característica universal", nunca deixou de buscar uma explicação sistemática e coerente da totalidade das coisas - preocupação constante em todos os seus escritos. A maioria, porém, permaneceria inédita por muito tempo. Foram poucas as obras que o próprio Leibniz publicou: pequenos ensaios como Discurso de Metafísica (1686) e A Monadologia (1714), ou tratados de maior fôlego, como Novos ensaios sobre o Entendimento Humano (1701 - 1704) - crítica a Ensaios sobre o Entendimento Humano, do filósofo inglês John Locke -, e Ensaios de Teodicéia (1710).
Da física à metafísica
"Suponhamos, por exemplo, que alguém lance ao acaso muitos pontos sobre o papel (...). Digo que é possível encontrar uma linha geométrica cuja noção seja uniforme e constante segundo uma certa regra, de maneira a passar esta linha por todos estes pontos e na mesma ordem em que a mão os marcara."
Palavras de Leibniz, para quem o método consiste não tanto em raciocinar ordenadamente, mas em buscar a ordem inscrita nas coisas. Isso, porém, é feito como no cálculo infinitesimal (ou diferencial e integral), de que Leibniz foi um dos formuladores: dada uma curva, é possível calcular a sua direção a partir de qualquer um de seus pontos, pois estes exprimem, cada um em si, o conjunto.
A rigor, não é o ponto que exprime o todo de uma curva, mas a tangente, que é uma linha. Para Leibniz, a linha não se define como o conjunto de infinitos pontos; é formada de linhas infinitamente pequenas, isto é, linhas infinitesimais. Isso significa que na geometria não há gradeza última, indivisível. Do mesmo modo, a natureza: "Cada porção da matéria", escreve Leibiniz, "pode ser concebida como um jardim cheio de plantas e como um lago cheio de peixes. Mas cada ramo de planta, cada membro de animal, cada gota de seus humores é ainda um jardim ou um lago".
A realidade é, então, um todo contínuo, sem interrupções, que não se esgota em alguma de suas partes, por ínfimas que sejam. Não há, portanto, o vazio, e Leibiniz, que nisso segue Descartes, não admite a existência do vácuo. Mas, exatamente porque esse todo pode ser subdividido em partes, Leibniz, ao contrário de Descartes, não considera a extensão como substância. Esta, por definição, deve ser simples, isto é, sem partes, enquanto a extensão sempre pode ser concebida como formada de partes, que, por sua vez, contêm partes ainda menores e assim indefinidamente.
A extensão também não pode ser substância, pois, se assim fosse, ficaria inexplicável o próprio objeto da física: o movimento. Este havia sido deduzido, por Descartes, como um dos atributos da res extensa, e equivaleria ao deslocamento de um corpo que, chocando-se com outro, o substitui. A direção do movimento seria definida instantaneamente no momento desse choque e, neste, a quantidade do movimento - que Descartes identificou com a noção de força - seria sempre constante.
Para Leibniz, porém, essa concepção é inaceitável. Isso porque, segundo o princípio da continuidade da realidade, não pode haver uma alteração instantânea do movimento. Num choque, cada ínfima parte do corpo deve perder gradativa e sucessivamente o movimento até readquiri-lo em sentido oposto. Além disso, Descartes confunde a quantidade do movimento com a força - o que Leibniz mostra indicando a diferença entre os movimentos de dois corpos em queda livre (calculados de acordo com a lei de Galileu) e sua força. A constância não está na quantidade de movimento (que se expressa na fórmula mv, sendo m a massa, e v a velocidade), mas na força.
A distinção entre força e movimento é fundamental, mesmo porque, a rigor, "o movimento (...) não é coisa inteiramente real, e, quando v´rios corpos mudam de situação entre si, é impossível determinar (...) a qual dentre eles se deve atribuir o movimento ou o repouso". A força, ao contrario, é "mais real": atributo do corpo, é ela a causa interna do movimento. O corpo, por isso, não se define apenas como extensão e seus atributos - tamanho, figura e movimento. É também dotado, interiormente, de uma força dinâmica.
Com essas considerações, Leibniz passa da física à metafísica. Para ele, a força, na medida em que se distingue dos atributos corpóreos e geométricos, é um princípio metafísico sobre o qual se apóia a própria física. A força é a "primeira enteléquia" - termo empregado por Aristóteles para designar a perfeição de uma coisa, atualizada por uma atividade que lhe é intrínseca e própria.
Mas atividade própria exatamente a quê, se os corpos podem ser subdivididos em partes? É preciso, então, supor a substância, a unidade sem partes e indivisível, de que tudo é composto e agregado. E, como "na Natureza nunca há dois seres perfeitamente idênticos", é também preciso conceber uma multiplicidade de substâncias, cada qual com qualidades distintas, de modo que a agregação delas resulte em seres individuais também distintos. Enquanto Espinosa supunha apenas uma substância (Deus) e Descartes, três (Deus, res cogitans e res extensa), Leibniz propõe um número infinito de substâncias, a que dá o nome de mônada (do grego monas, isto é, "unidade").
O mundo completo das mônadas
Indivisíveis, sem partes, as mônadas não podem ser materiais. São, então, da ordem espiritual; são idéias e expressam (ou representam - Leibniz não distingue a expressão da representação). Mas expressam o quê? Leibniz responde: "E, assim como a mesma cidade parece outra e se multiplica perspectivamente sendo observada de diversos lados, o mesmo sucede quando, pela infinita quantidade das substâncias simples, parece haver outros tantos universos diferentes, que, no entanto, são apenas as perspectivas de um só, segundo os diferentes pontos de vista de cada mônada". desse modo, cada mônada expressa a totalidade das coisas segundo os pontos de vista; é, portanto, "um espelho vivo e perpétuo do universo". O mundo físico e corporal é, então, composto de representações das mônadas.
O ato pelo qual as mônadas representam o universo chama-se percepção. Esta, porém, não é fixa: cada mônada tende para representações perfeitas, e o princípio interno (a força) que provoca tal tendência recebe o nome de apetência. As mônadas distinguem-se entre si por graus diferentes de perfeição da percepção, que as distribuem em uma série hierarquizada, desde as "mônadas nuas, em que as representações são confusas, até as "superiores", em que a percepção é acompanhada de apercepção, isto é, de auto-representação ou consciência.
Cada mônada é "como um mundo completo" e, além disso, ditada de uma força dinâmica que a faz tender para a perfeição da representação. Isso significa que as mônadas são propriamente enteléquias, "pois contêm em si uma certa perfeição, e têm uma suficiência a torná-las fontes de suas ações internas". Em outras palavras, as mônadas são independentes entre si, isto é, cada uma delas não sofre nenhuma ação exterior da outra, as infinitas mônadas, porém, constituem uma série ordenada de graus de perfeição. Cada mônada, segundo a famosa imagem usada por Leibniz, é como um relógio que marca a mesma hora que os demais, meso funcionando independentemente. Ou então é como a linha infinitesimal que exprime a linha de uma curva em sua totalidade, embora esta não possa ser conhecida por estender-se até o infinito.
Mas a ideia de relógios que marcam a mesma hora ou de linhas que exprimem o todo impossível de conhecer requer que algo tenha ajustado os relógios ou que possua o conhecimento da linha como um todo. Esse algo não pode ser uma substância entre outras mônadas, pois estas representam o universo de um ponto de vista particular e, por isso, finito. Cada uma delas também tende ao máximo grau de perfeição que lhe é possível, mas isso também significa que são imperfeitas. E seres finitos e imperfeitos não são capazes de ordenar as infinitas mônadas.
Essa ordenação, que se faz segundo o que Leibniz denomina harmonia preestabelecida, só pode ser criada por uma substância infinita e perfeita, que contenha como infinitas representações e percepções de todas as mônadas. Essa substância deve estar separada das outras. Mais do que isso, deve ser a criadora das mônadas, que dela dependem. Deus é o nome dado a essa substância infinita, perfeita, criadora de todas as coisas e da harmonia preestabelecida.
Fonte:
ABRÃO, Bernadete Siqueira (org.). História da Filosofia. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2004, p. 224 - 231.
Fonte:
ABRÃO, Bernadete Siqueira (org.). História da Filosofia. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2004, p. 224 - 231.
Um comentário:
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